quarta-feira, 23 de abril de 2008

O CONSELHO DO REI NA UTOPIA DE THOMAS MORE (Diálogo II)

Carlos Renato Carola – Professor Universitário

Utopia significa “lugar que não existe”. Inspirado no modelo da República de Platão, Thomas More (1478-1535) narra a história de uma ilha imaginária, descoberta pelo filósofo-viajante Rafael Hitlodeu (personagem também imaginário), estabelecendo uma comparação entre o real e o ideal. Utopia – obra publicada em 1516 – representa a sociedade idealizada e a Inglaterra a sociedade corrompida, segundo os parâmetros e a visão de More, filósofo e diplomata que foi decapitado por se recusar a avalizar a separação da igreja anglicana da católico-romana. Embora a História tenha revelado a face trágica das experiências utópicas baseadas em ideais de justiça e igualdade, o método comparativo usado por More ajuda a pensar nas possibilidades de superar problemas e vícios da cultura política do presente. Eis, portanto, o objetivo deste breve diálogo.

Rafael Hitlodeu (o personagem fictício de More) nasceu em Portugal; estudou filosofia e se aventurou nas viagens de Américo Vespúcio. Nas viagens conheceu burgos e cidades bem administradas, nações e Estados poderosos; conheceu povos e instituições tão ruins como os da Europa, assim como instituições, leis e costumes capazes de “regenerar as cidades, nações e reinos da velha Europa.” Durante suas viagens se preocupou em analisar detalhadamente as formas de governos das diferentes nações encontradas.

Por sua experiência e sabedoria, More sugere a Rafael – o filósofo-viajante - que seus conhecimentos seriam de grande utilidade para algum rei e que isso poderia lhe trazer vantagens pessoais. Mas Rafael diz não ter apego a bens materiais e nem acumularia ouro para se tornar escravo de um rei. Além disso, argumenta que “muita gente ambiciona os favores do trono”; por isso, “os reis não sentirão falta, se eu e dois ou três da minha têmpera não nos encontrarmos entre os cortesãos.”

More insiste que Rafael deveria usar seus conhecimentos e talentos para o “bem público”, aproximando-se de um rei ou sendo um dos seus ministros, uma vez que o príncipe era “a fonte de onde o bem e o mal jorram como uma torrente sobre o povo.” Rafael replica salientando dois erros no ponto de vista de seu interlocutor. Primeiramente, ressalta que os príncipes priorizam a guerra, coisa que ele diz não ter conhecimento e nem desejo de conhecer. Em seguida, comenta as artimanhas e mediocridade que imperam no seio do Conselho Real. No Conselho de ministros do rei, diz Rafael, predomina os piores tipos em termos de caráter; há o tipo que se cala por inépcia; os que sabem, mas preferem aplaudir as “imbecilidades” do favorito do rei; e aqueles que só sabem ouvir a própria opinião. De um modo geral, predominava o perfil daqueles que tinham interesse próprio e ambição por poder e riqueza. Portanto, More caracteriza (por meio de seu personagem imaginário) o Conselho do rei como um espaço onde reinava a inveja, a vaidade e o interesse particular.

More persiste no diálogo com o filósofo-viajante; insiste na idéia de que os conselhos dele “seriam de uma alta utilidade pública”, principalmente se fossem para vencer o “horror” que inspiravam os reis e as cortes. Mais enfático ainda, More indaga que o papel do “bom cidadão” era sacrificar “suas ojerizas particulares” em prol do interesse geral; evoca as palavras de Platão, quando disse que “a humanidade será feliz um dia, quando os filósofos forem reis, ou quando os reis forem filósofos”; e ainda questiona Rafael dizendo que tal felicidade fica mais longe de se tornar realidade quando “os filósofos nem ao menos se dignam assistir os reis com seus conselhos!”

Rafael replicou mais uma vez os argumentos do seu interlocutor. Mas suponhamos, argumenta o mesmo, que eu fosse um ministro do rei; um ministro preocupado com o bem público e obstinado em combater os germes do mal existente no coração real e em seu reino. “Acreditais que não me expulsará da corte ou que não me exporá ao risco dos cortesãos?”. Ora, caro More, nesse tipo de Conselho, o que um filósofo preocupado com o bem público e a felicidade geral do povo pode fazer? Que reação teria o rei e seus ministros diante de uma proposta que contrariasse a lógica da intriga, da ambição, da riqueza e da guerra? De forma irônica, Rafael descreve a seguinte situação: “- Senhor, aproveitai a paz que um feliz acaso vos concede, cultivai o reino de vossos pais, fazei nele florescer a felicidade, a riqueza e a força; amai vossos súditos, e que o amor deles faça a vossa alegria; vivei como pai no meio deles e não comandeis nunca como déspota; deixai em paz os outros reinos; aqueles que vos coube por herança é suficientemente grande para vós.”

Então, More lança um último argumento. Se no âmbito dos negócios do Estado e no seio do Conselho Real não se pode, de uma só vez, derrotar as artimanhas perversas e muito menos afugentar os costumes imorais, isso não é razão para abandonar a causa pública; “e, se vossos esforços não puderem servir para efetuar o bem, que sirvam ao menos para diminuir a intensidade do mal.” Rafael compreende a preocupação do seu interlocutor, mas reafirma sua visão em relação ao jogo do poder existente no seio do palácio real. Lembra que a moral de Cristo não condiz com os costumes do mundo real e que o Evangelho foi ajustado de acordo com “os maus costumes dos homens”.

Assim, naquela tradicional cultura política, seja na Inglaterra, na França ou mesmo em outra nação européia, era inútil tentar aconselhar o rei no sentido do bem público, do bem comunitário, pois “o ar que aí se respira corrompe a própria virtude.”. Além disso, Rafael não acredita na possibilidade de igualdade e justiça social numa sociedade edificada sobre os pilares da propriedade privada e a lógica do dinheiro. Mas, se não havia “esperança em transformar o mal em bem” numa sociedade corrompida e decadente, More focaliza uma luz de esperança na república de Utopia, ou seja, num novo modelo de sociedade; e nessa sociedade idealizada, ele traça os princípios e a forma institucional de uma nova cultura política, de um novo regime de governo e um sistema eleitoral onde povo escolhe seu governo, inclusive o príncipe.

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